Lucilda e os Palhaços Tarados.

Essa é uma história triste, aconteceu em Florianópolis/SC.
Lucilda era uma garota pobre de origem. O pai, um conhecido bandido do morro do Vidigal no Rio de Janeiro e a mãe, ex-prostituta do porto de Santos, conheceram-se num jogo do Flamengo, no Maracanã. Estávamos no verão de 1974 e o Brasil ainda combatia o terrorismo de esquerda com mão de ferro. No afã de preservar a liberdade, os militares invadiram o estádio e desceram o cacete na urubuzada, chovia bala para tudo quanto é lado. Os pais de Lucilda se refugiaram no barracão que seria a sede do Comando Vermelho anos mais tarde (orgranização que teve suporte intelectual de comunistas), onde foi concretizado o coito animalesco que deu origem à protagonista de nossa triste história. Quando Lucilda nasceu o pai a rejeitou, desconfiava da infidelidade da parceira que noites atrás se deitara com toda a torcida rubro-negra. Expulsa de casa, sua mãe vagou por meses procurando vaga nos prostíbulos da cidade maravilhosa. Deu, ou melhor, vendeu sua fonte de prazer por noites ininterruptas, até que ficara visível sua gravidez e o cafetão teve que demiti-la do ofício. Perambulou os bairros nobres da zona sul na esperança de um lugar ao sol. Às vezes davam-lhe o que comer, regozijava-se quando retinha alguns restos de comida que, num gesto de incrível humanidade a caridosa elite carioca lhe concedia. Era andarilha, incomodava a todos mas mesmo assim não morreu de fome, comia feito uma cadela prenha. Pariu Lucilda num beco escuro, defronte ao famoso Hotel Copacabana.
Sem recursos para criar a miserável que pôs no mundo, a mãe de Lucilda doou a filha a um casal ricaço de Santa Catarina, a respeitável família alemã Waisifiuder. À medida em que ia crescendo, a pequena infante de origem precária aprendia os valores fundamentais da vida: apreciava um bom charuto, distinguia claramente um Romanée-Conti de uma cidra de Paranaguá. Fôra instruída a praticar atividades esportivas decentes como tênis, squash, hipismo e golfe. Tinha vida regular, de princesa se comparada a outras meninas de um país de terceiro mundo como o Brasil. Mas Lucilda tinha um defeito grave, congênito, provavelmente herança do sangue ruim de seus pais: era socialista já aos 7 anos. Gostava de andar com amigos pobres dos bairros circunvizinhos, de status reconhecidamente inferior aos de sua gloriosa família. Entre esses amigos estava um moleque perdido, homossexual, que morava perto da Av. Mauro Ramos, no centro da cidade. Certo dia o rapaz a convidou a ir ao circo, instalado nas imediações da Universidade Federal. Era um circo criado por um grupo de voluntários da universidade, composto na maioria por estudantes gramscianos da área de exatas e biomédicas, que improvisavam o espetáculo. Era um domingo, inesquecível dia 4 de julho. O festival de horrores estava para começar.
Lucilda chegara ao circo. A apresentadora, uma riponga emaconhada, introduziu o grupo responsável pela atividade. Deu uma pausa e começou a criticar os Estados Unidos. Proferia bobagens sobre imperialismo, guerra no Vietnã, etc. O público aplaudia de pé, Lucilda, criança inocente, acompanhava a trupe calorosamente. E assim, seguiam-se os shows, cada um mais esquerdista que o outro, cada um mais aplaudido que o outro, o lugar estava infestado de esquerdistas. Enfim, chegara a hora do número mais aguardado: o dos palhaços. A apresentadora anunciou a dupla bizarra, os palhaços Dréppy, o saltitante e Brônho, o linguarudo. A encenação era a mais tosca possível, os palhaços interagiam com a platéia contando piadas politicamente corretas, todos riam até entrar numa espécie de catarse ou transe caótico virulento. Não é preciso dizer que no final a performance mais aplaudida fora a dos palhaços. Lucilda era a das mais empolgadas, adorava pessoas idiotas se fazendo de retardadas. No auge do seu entusiasmo, seu amigo pervertido a convidara a conhecer os bastidores, os artistas por detrás das máscaras. Lucilda aceitou de pronto. Visitaram então os personagens mais asquerosos do mundo circense: a mulher-russa barbada, o homem-bomba afegão, o piloto islâmico acrobata, o cavalo real, o burro Vermelhinho, o transformista malaio, etc. Aproximava-se o momento derradeiro, aquele pelo qual Lucilda tanto esperava, a visita ao trailer dos palhaços.
Era uma tarefa hercúlea, muito disputada. Dréppy e Brônho eram as maiores atrações do circo “Foice e Martelo”. Mas Lucilda tinha paciência, esperara horas e horas, não iria perder aquela chance. Finalmente, entrara no trailer. Era um lugar bonito, portas de mármore, lustres de ouro, familiar à tradição humanista da família de Lucilda. Ela estranhou à primeira vista, todavia a emoção era tão grande que nada disso parecia tirar sua atenção dos vultos que se aproximavam para recebê-la. O primeiro a cumprimentá-la foi Brônho e logo depois, Dréppy. Este último estava com um broche de um famigerado sindicalista de esquerda que fazia baderna no ABC paulista. Falaram sobre muitas coisas, repetindo no final de cada frase as jocosas palavras-de-ordem: “morte ao capitalismo”. Doutrinaram de tal modo a cabeça da pobre criança a ponto de induzirem-na a entrar no Partido. Era uma honra para Lucilda, todos falavam do Partido mas poucos tinham conhecimento do mesmo. No entanto, para entrar no Partido era preciso abraçar a causa coletivista, começando pelo próprio corpo. Oh, pobre infante! Dréppy e Brônho a levaram para um quarto escuro, após a ante-sala do trailer no qual estavam ela e seu amiguinho prismático. Este tinha se ausentado para conhecer o canhão do homem-bala.
Dentro daquele ambiente hostil, onde figuravam pôsteres de Che Guevara, Fidel Castro, Carlos Lamarca e Brejnev, iniciou-se um ritual chamativo, para não dizer estranhíssimo. Enquanto Lucilda era amarrada por Brônho, Dréppy pulava feito um depravado de uma extremidade à outra. Brônho dizia que era por causa da felicidade de estarem no Partido, por serem de esquerda. Lucilda em tudo acreditava, até que os dois palhaços ficaram nus, mostrando seus corpos ridículos. Agora era Dréppy que lhe explicava a gênese do ser humano, o comunismo de Adão e Eva. Oh, queridos leitores, lágrimas correm nos meus olhos quando narro essa cena. Os dois palhaços falavam a Lucilda que as roupas eram uma mercadoria, faziam parte da lógica burguesa. Após esta narração do inferno, não é preciso relatar o que veio a seguir.
Passou muito tempo e repetidas vezes Lucilda visitava o circo, chegando a ponto de trabalhar nele. Envergonhou seus pais quando decidiu se mudar para Cuba aos 21 anos. Morreu afogada aos 34, quando tentava cruzar a fronteira rumo à Flórida.